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Crônica da Semana

( Mais uma da série *Chão-de-Fábrica
Te peguei no chão-de-fábrica

No primeiro emprego do Zé, ele passou poucas e boas pra poder se acostumar. Depois do treinamento de uma semana, pra entender tudo que rolava no chão de fábrica de uma indústria de eletrônicos. Ele já estava apto a começar no batente. Na segunda-feira acordou as cinco da manhã. Tomou banho. Passou um avanço embaixo do sovaco. Vestiu uma beca jeans e uma camisa de cola pólo. Pegou a bata novinha que tinha recebido na sexta e lá se foi rumo a avenida Leopoldo Peres no bairro de Educandos, ali na esquina da Discolandia, esperar a rota 03. As seis e dez em ponto, lá vinha o ônibus velho. Ele entrou, se ajeitou ali pela frente mesmo e seguiu rumo ao distrito industrial. As seis e trinta e cinco já estava desembarcando no portão da empresa. A primeira coisa a fazer era enfrentar a longa fila do café da manhã. Pão adormecido com manteiga e café com leite meio morno, mais nada. Depois era seguir pela primeira vez ao banheiro da empresa. Havia nos banheiros os armários dos funcionários, onde estes podiam deixar as camisas, pasta e escova de dentes, etc. Era nos et cetera que o Zé começara a ter suas primeiras impressões. Cada uma era mais ornamentado que o outro. Um tinha a playboy do mês quase toda. Outro tinha o Salmo 90 de cabo a rabo. Um, bem ao lado do do Zé, tinha uma perfumaria. Depois o Zé descobriria que no chão de fábrica o comércio informal rolava solto. Vendia-se de tudo, mas isso vale outra crônica. Voltemos ao primeiro dia do Zé e os trotes. Depois de deixar ali sua camisa e abastecer a ponta da escova com sua Kolynos, seguiu para as pias coletivas. Grandes balcões de aço inox dispostos na parede cada um um com um conjunto de seis torneiras. A primeira coisa que notou foi que não havia onde rodar para abrir a torneira. Ué! Pensou, pensou o Zé. E ficou ali esperando uma vaga, mas decidiu observar um pouco antes de meter a cara. Foi ai que presenciou o primeiro trote de muitos que iria ver. Naquele mesmo dia, muitos outros novatos estavam iniciando no trabalho como ele. Os mais antigos estavam eufóricos, pois como diziam, havia muito cabaço na área pra ser pego. Foi ai que a coisa começou:
Um dos mais antigos aproximou-se da torneira falando alto e chamando a atenção de todos. Quando ele foi abrir a torneira todos os novatos, inclusive o Zé, ficaram de olho para aprender como é que fazia para sair água daquele troço. O cara fez ali um gesto de benzer a torneira e logo a água saiu. Outro da antiga veio em seguida e disse: água! e num é que a água saiu. Tava ali armado o circo. Quando eles saíram os novatos foram direto e um já foi benzendo a torneira. Entre risos e falatório alguém disse: Cabaço tu tem que ter fé. Faz de novo. Lá foi o pobre coitado benzer a torneira mais uma vez, pra gargalhada geral. O outro já estava falando água pela segunda vez e nada. Ai um disse: cabaço tu tem que apertar esse botão ai em cima da torneira e falar bem devagar Á-G-U-A, pra torneira memorizar tua voz. Num te explicaram isso não? Lá se foi o pobre coitado fazer exatamente isso. Foi uma algazarra geral. O Zé lógico, num sabia se ria ou se chorava. E agora? Pensava ele. Ah, mas o Zé num era assim tão besta. Quando um dos funcionários da antiga se aproximou de outra torneira e se benzeu, ele viu o pé do cara pisar com força no chão. Opa! Matei a parada! Vão pegar outro. Sorriu o Zé. A torneira tinha um sistema de válvula de piso. Tinha que se fazer pressão numa área bem embaixo da torneira no chão, por sob o tapete de borracha. Por isso ninguém via as válvulas. Lá foi o Zé todo feliz e pra entrar na onda da moçada disse em alto e bom tom: ÁGUA! E a água jorrou. Claro que pela pressão de seu pé na válvula do chão e não pelo som de sua voz. Mas os outros novatos já não sabiam mais se benziam ou se gritavam, enquanto muitos gargalhavam e outros sacavam que o Zé num era trouxa, a brincadeira foi cessada pela entrada do reserva de produção que era um cagueta ou dedurão, como diziam os mais velhos. Nessa o Zé havia passado. Ufa!
Após vestir a bata o Zé seguiu rumo a área de encontro com alguns dos novatos e um rapaz que os tinha vindo chamar no banheiro. Seguiram todos e ficaram esperando o supervisor. Este veio e começou a dizer o que cada um iria fazer. O Zé e mais alguns foram mandados para a máquina de solda. Uma espécie de geringonça onde as placas de circuito impresso de aparelhos de som e televisão eram colocadas para soldar os componentes que eram montados pelas montadoras das linhas de produção em série. O trabalho era pegar uma placa do carrinho onde estas vinham das linhas, dispostas num dispositivo chamado de jig, e colocá-las no carrinho da máquina de solda que ficava girando. Enquanto uns colocavam, outros já tiravam as que saiam. Nos primeiros dias tudo ocorreu normalmente e o nosso amigo Zé tava todo entusiasmado. As horas mais esperadas ela já sabia que era a hora do leite, as nove e meia e a hora do almoço. No caso dele, as doze e meia. O leite era porque a máquina trabalhava com solda a base de chumbo e fazia muita fumaça. Alguém colocou o leite como desintoxicante ou fortificante, ele nunca saberia. Mas era gostoso. O almoço era um corre-corre maluco. Mais de duas mil pessoas em fila pegavam um bandejão e iam passando e sendo servidos. No final um copo de suco, que variava entre uva e maracujá. Depois do almoço tinha ali uma espécie de sala com joguinhos de sinuca e pebolin, que alguns chamavam de totó. Também uma tevê e alguns bancos pra dar uma relaxada rápida. Depois era batalha até as cinco e quinze, mais meia hora de rota e chegar em casa mais quebrado que arroz de terceira.
Lá pela terceira semana e já que meio entrosado com a moçada da máquina de solda, o Zé iria presenciar a segunda pegadinha de chão de fábrica. Um dia alguém deu por falta de um componente em uma das placas que iriam ser colocadas na máquina de solda. Era um circuito integrado. Uma pecinha preta cheia de terminais, parecia um pente de dois lados para os leigos, como era um componente tido como classe A, caro e importado, de função específica no funcionamento do aparelho. Não podia-se perder nenhum, sob pena de esculacho tête-à-tête. Ai chamaram o Nelsão. Um cara forte e encorpado que tinha começado junto com o Zé. Oh Nelsão, vai lá na manutenção com o Raimundo Novais e diz prele mandar o imã de procurar IC. Mas vai logo que é pro supervisor num saber que agente perdeu um aqui. Vai meu, rápido! Lá se foi o pobre do Nelson, meio sem saber o que ia pegar. Nessa um dos que pediram o favor correu até a mesa e pegou o telefone, todos correram pra perto. O zé, obviamente foi na onda. Raimundo, já mandei um cabaço pegar o imã. Diz pra ele que aquela pedra de amolar tesado que tem ai na sala de manutenção é o imã e pede prele trazer aqui. Nisso todos riram e voltaram aos seus postos. Cinco minutos depois lá vem o pobre do Nelsão com aquela pedra enorme sobre os ombros. Quando ele percebeu que caíra num trote já era tarde e tinha neguinho rolando pelo chão de tanto rir. Deu vontade dele jogar a pedra nos caras, mas o Zé logo correu até ele e disse: Deixa pra lá Nelson. Coloca essa pedra lá fora. O Zé tava era contendo o riso também da cena. Depois de muita risada o Nelson desistiu de querer matar alguém e ficou na certeza que na próxima ele iria sair de vítima a mais um a sorrir, pois ali naquele meio, sorrir era uma boa maneira de extravasar o cansaço do dia-a-dia.
*Chão-de-Fábrica: forma como são definidos os locais de produção das empresas. Geralmente onde tem os cargos mais duros e com menores salários, mas de vital importância para a empresa. Também chamado de produção ou de montagem. Típico de Manaus.

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